A vida que brota da pedra, uma linda história das masqueiras e quilombolas de Búzios


Selma, presidente da Associação das Marisqueiras do Quilombo da Rasa: "As pedras me chamam"


Em 02/11/2023

A VIDA QUE BROTA DA PEDRA, UMA LINDA HISTÓRIA DAS MARISQUEIRAS E QUILOMBOLAS DE BÚZIOS

Maria Fernanda Quintela

Selma, presidente da Associação das Marisqueiras do Quilombo da Rasa: "As pedras me chamam"

O vento, sempre o primeiro a se fazer sentir, não consegue superar a velocidade do arrebatamento causado pela grandiosidade da paisagem. A beleza da visão domina todos os sentidos

No livro ‘Crônicas de Búzios’ que lançou em agosto deste ano ao completar 90 anos de idade, Joaquim Bento Ribeiro Dantas, o nosso Bentinho, nos ajuda muito a entender este lugar.

“Búzios são todas as paisagens em um pequeno trecho de costa… um panorama único posto naquele lugar por um sábio com alma de poeta”.

Estamos agora num local único no planeta. De acordo com cientistas, geólogos, botânicos, oceanógrafos, pesquisadores das mais diversas áreas, não existe outro ecossistema igual ao Mangue de Pedra existente em Búzios.

Comunhão da água salgada com a doce que infiltra no solo e surge na praia, a vegetação do mangue brota entre as pedras, assim como a vida de inúmeras espécies de conchas e moluscos, crustáceos, peixes.

Para se sustentar, os manguezais necessitam de água salobra e por isso são encontrados geralmente na desembocadura de rios e córregos. O Mangue de Pedra recebe água doce de um aquífero subterrâneo, e como o seu próprio nome diz, seu substrato é essencialmente rochoso, diferente dos demais mangues que brotam em solo lamoso, argiloso. Berçário de fauna e flora singulares, este local de notável valor paisagístico e grande interesse científico, abriga também a história de toda uma comunidade.

As pedras estão me chamando

Rosineide cresceu mariscando no mangue
Não precisa combinação. Aos poucos elas chegam e de longe a gente já sabe que são elas. Baldes e sacolas na mão, sem cerimônia as marisqueiras vão entrando direto no mangue.

– Quando eu piso aqui eu sinto as pedras me chamando.

Filha do lugar, criada no mangue coletando ao lado da família, Selma Gonçalves tem olhos e mãos que não demoram nada para mostrar sua parte território, seu gestual que é mar, areia, pedra, vento, tudo junto, e que rapidamente a fazem encontrar alimento escondido entre as pedras.

São goiás, lega minas, sacuritás, siris, corondós, ouriços, salambicas, moriongos, churiscos, conchas e crustáceos dos mais diversos e divertidos nomes, formatos e sabores, espécies que há gerações estão no prato das famílias quilombolas da Rasa.

– Venho aqui quase todos os dias. Quando criança vinha com meu pai e irmãos. Meu pai pescava, a gente percorria tudo isso. Tinha uma pedra que ele mostrava pra gente e dizia: “aqui tem a marca do chicote, da roda da carroça, e da pata do cachorro”. É a nossa origem quilombola, a história do nosso povo né – conta Selma.

Presidente da Associação das Marisqueiras Quilombolas da Rasa, que soma 52 associadas, Selma representa uma turma de mulheres animadas, que buscam a continuidade do envolvimento com o território, com a natureza. A conexão com sua origem e comunidade.

“As conchas menores a gente não pega, deixa crescer. Tem que ter este respeito”
Judete

Povos tradicionais sabem que o envolvimento é primordial para a sua proteção e proteção de todas as vidas, visíveis e invisíveis.

– Estes menores a gente não pega, deixa crescer. Tem que ter este respeito. As carapaças das conchas vazias a gente também não pega. Elas servem de abrigo para a vida se desenvolver. Filhotes de lagosta, goiá e mais um monte de bichinhos crescem dentro delas – nos explica Judete da Silva, enquanto caminha com destreza sobre as pedras.

– Minha tataravó veio da África, foi escravizada. Minha avó contava que ela falava a língua de lá. E ela também mariscava aqui. O mangue sempre alimentou o nosso povo – completa.

Diferente dos mangues que brotam na lama, o Mangue de Pedra brota no substrato rochoso.

Acostumadas a receber a visita de cientistas, gente de toda parte que vem conhecer e estudar o Mangue de Pedra, Roselene Pereira aprendeu a identificar as mudas de mangue preto e mangue vermelho, que a maré joga na areia da praia. Atenta, ela recolhe as mudas e as planta dentro do mangue.

– Fico feliz quando encontro as mudas. É a vida se renovando, seguindo seu ciclo. Eu sou este lugar, carrego ele comigo, dentro de mim. Também sou muda daqui, plantada no mangue pelas minhas tias da comunidade quilombola, que me ensinaram tudo aqui e me traziam para mariscar. Elas vinham sempre em grupo e passavam nas casas chamando a criançada. Na volta pra casa cada criança levava o seu “punhado”, dividido com carinho pelas tias. A comunidade sempre deu conta de cuidar dos seus – diz Roselene.

Sem garantia

Neste raro e delicado ecossistema que é o Mangue de Pedra, o equilíbrio da cadeia de vida está sempre por um fio. Alterações externas afetam diretamente este patrimônio natural tão especial, e ameaças não faltam. Além do crescimento acelerado do bairro da Rasa e entorno, que promove a pavimentação do solo que deveria absorver água para o aquífero que alimenta o mangue, o lixo trazido pela maré enche de plástico grandes áreas deste paraíso.

Além disso tem o esgoto. Por se situar muito próximo da foz do rio Una, o Mangue de Pedra está sujeito a receber tudo o que é despejado no rio ou em seus afluentes. E eventualmente uma carga de esgoto ou o despejo criminoso de algum produto invade suas águas poluindo e afetando de forma grave o equilíbrio da vida.

Comunidade disse não

Mulheres caminham com destreza sobre as pedras e levam o alimento pra casa
O último grande embate vivido por esta comunidade quilombola, uniu a população de Búzios em torno da questão da Transposição do rio Una. A proposta de despejo do esgotamento sanitário das estações de tratamento de esgoto de São Pedro da Aldeia, Iguaba Grande e Cabo Frio nos afluentes do rio Una, assustou e mobilizou também a comunidade científica.

Em Audiência Pública realizada na Câmara de Búzios no dia 30 de junho, promovida pela Comissão de Defesa do Meio Ambiente da ALERJ, sob responsabilidade do deputado Jorge Felippe Neto e participação de representantes do Ministério Público Federal e Estadual, Inea, Agenersa, Prolagos (concessionária responsável pelos serviços de saneamento), prefeitura, casa legislativa, comunidade científica, e sociedade civil, num debate acalorado de mais de quatro horas de duração, decidiu-se que a transposição é inviável pois ameaça diretamente a vida do rio Una, todo o ecossistema do Mangue de Pedra, as comunidades da Rasa e Maria Joaquina, que sofreriam com o alagamento de áreas e descaracterização completa de seu litoral, e também a balneabilidade das praias de Búzios seriam afetadas, ameaçando toda a península.

– A população pode ficar tranquila, porque nós não vamos implantar uma solução que a comunidade não queira. Nós da Prolagos temos um estudo que contraindica a transposição do rio Una. Ainda que não houvesse este estudo, é legítimo que a população não queira determinada solução – afirmou o diretor presidente da Prolagos, Pedro Freitas, que acrescentou – Eu faço questão de estar presente nas reuniões, a gente sempre busca estar aberto à população e ouvir, porque eu preciso da inteligência e vivência do buziano pra orientar nosso investimento.

Compromisso assumido, a comunidade permanece atenta aos próximos acontecimentos e decisões. Nesta luta diária que é garantir o direito de continuar existindo, a vida no Mangue de Pedra vai travando a sua batalha. E é de lá que nos vem o valioso recado, dito por Roselene.

– Nossa cultura está viva porque está em contato com o seu território. É este contato com o território que nos faz não esquecer quem somos, de onde viemos e inclusive para onde temos que ir. Diversos são os frutos que as marisqueiras conseguem no mangue

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